Senhores e senhoritas,
hoje é feriado, dia de leitura. Então,
TIRADENTES E 21 DE ABRIL
Na quarta-feira, dia 21 de abril, acordei cedo, como de costume, bebi o café que eu mesmo preparei, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo uma reflexão. Tiradentes e a inconfidência. Esta palavra veio do latim confidentia, confiança. O prefixo in traz o sentido de negação, ato de trair. Outro termo, mais rude, suscita a sensação de dor, arrancar, puxar, tirar, esquartejar. Tudo pede certa elevação. É certo que vivemos a era das verdades esquartejadas, não menos certo, porém, é certeza de que cada uma de nossas verdades deve ter um mártir.
Machado de Assis, apesar do ceticismo, não economizou elogios a Tiradentes desde 1860, sobretudo na questão da inauguração da estátua equestre de d. Pedro I na praça do Rocio (agora praça Tiradentes), no Rio de Janeiro. Ora, no lugar onde o mártir fora enforcado, o governo imperial erguia uma estátua ao neto da rainha, responsável pela condenação do alferes. Na crônica de 1 DE ABRIL DE 1862, publicada no Diário do Rio de Janeiro, quando se comemorava a estátua, o cronista escrevia “Está inaugurada a estátua equestre do primeiro imperador. Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em júbilo e satisfação. Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma legítima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses reconhecem-se vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar mas serem ouvidos. O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão da memória que hoje domina a praça do Rocio.”
A crônica de 25 de abril de 1865, o cronista volta a se referir a Tiradentes “Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito da história, e está armado para a batalha do futuro. Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história não se perca nas sombras da memória do povo. É uma grande data 7 de setembro. Mas a justiça e a gratidão pedem que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública? Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.”
A última série de crônicas da vida de Machado de Assis, A Semana, teve início na semana seguinte ao “dia de Tiradentes”, ano do centenário da morte do inconfidente, 1892. Vejamo-lo “O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração de glória. Merecem, decerto, a nossa estima aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.”
Em 1893, cronista volta a dar o tom sobre o mártir “Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução que venceu. Saí à rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos? Pelos acontecimentos. Que acontecimentos? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imaginação. Assim se desvaneçam todos os demais ovos do marido de La Fontaine. Só um fato se havia dado, como disse, o do coreto. Fui à praça ver os destroços, mas já não vi nada; achei a estátua e curiosos. Desandei, atravessei o largo de S. Francisco e desci pela rua do Ouvidor, ao encontro do préstito de Tiradentes. Soube que já não havia préstito. Era pena; esta cidade tem, para Tiradentes, não só a dívida geral da glorificação, como precursor da independência e mártir da liberdade, mas ainda a dívida particular do resgate.”
Enfim, o tempo urgia a findar tal reflexão; a manhã já me abandonava; ouvia o ruído dos automóveis; o movimento de nossa época, indiferente ao herói do passado. Lembrou-me Alcebíades que seguia Sócrates, sem capacidade e sem disposição para mudar sua vida, mas perturbado, enriquecido e cheio de amor. Algumas vidas são exemplares, outras não; e entre as vidas exemplares há as que nos convidam a imitá-las, e outras que miramos à distância com uma mistura de medo e reverência, do latim reverentia, originalmente designando temor respeitoso diante das coisas sagradas, mas hoje...